Agora entendo que só tomamos determinadas atitudes quando somos forçados pelas circunstâncias ou quando determinado problema de saúde exige. Lendo um artigo da lavra do meu estimado e intelectual sobrinho, Dídimo Heleno Póvoa Aires, meu confrade na Academia de Letras de nossa terra natal, Dianópolis (Go/To), tenho sempre falado e estou convicto de que determinado fato, embora ocorra da mesma forma, aos olhos do escritor pode ser descrito de formas diferentes. Mas neste caso, com a devida aquiescência do meu sobrinho, este artigo tem como inspiração o excelente texto que por ele foi produzido e que de tão precioso, não me deixa muita alternativa, sendo humanamente impossível fugir da ideia central.
Já por alguns anos inserido na faixa da melhor idade, ainda busco a razão do termo “melhor”, pois, embora acumulemos muitas experiências, torna-se, também, um período bem melhor para comprar remédios, procurar academia, fazer caminhadas, ou discordar de muitos comportamentos do mundo contemporâneo. Na linha de pensamento do filósofo Confúcio, IV Séc. a.C., na minha faixa etária devo considerar-me na plena idade da razão e com direito a fazer tudo que meu coração pede.
Em vista de ser meu avô materno, que era Cândido e, também, José, fabricante de cerveja caseira, por sinal uma das melhores que conheci, na pré-adolescência tive meu primeiro contato com aquela deliciosa bebida, e de lá para cá, quem me conhece, sabe que desenvolvi com ela uma relação de amizade que passou para o amor e depois estabeleceu-se uma paixão. A partir de então, não me lembro o final de semana em que fiquei sem degustar minha loira de colarinho branco, numa reciprocidade mágica, em que nos consumíamos, mutuamente. Nos últimos tempos, nosso caso começou a ficar meio conturbado, afinal todo relacionamento quando se intensifica, tem suas crises existenciais, quer por ação, omissão ou por força das circunstâncias e em decorrência de que quando em vez absorvia um bom vinho.
Isso ocorreu quando me submeti a um tratamento de radioterapia iniciado em 2015, mais exatamente há 1 ano e 6 meses, embora não proibido pela minha excelente médica oncologista, resolvi, por questão de foro íntimo, cortar meu relacionamento com a cerveja por um tempo, em nome da saúde. De lá para cá, tenho percebido e constatado com mais clareza, que as propagandas veiculadas por todos os meios de comunicação, são todas absurdamente enganosas. Aquelas mulheres lindas que aparecem nos incentivando a beber, certamente não ingerem uma gota de álcool, caso contrário não seriam tão belas. Os homens, igualmente “sarados”, nunca conseguiriam manter os corpos com a ingestão exagerada de cevada, com seus respectivos ingredientes, devidamente fermentados. É tudo ilusão. Corpo de quem ama cerveja é roliço, liso, inchado e amarelado, como a própria bebida.
O fim desse longo namoro resultou numa imediata e surpreendente resposta do meu organismo, que reagiu com alegria à nova vida sem álcool.
Mas o fato é que nós, “alcoólatras moderados”, cometemos a insensatez de tirarmos o atraso, ingerindo em dois dias (sexta e sábado) o que deveríamos ingerir durante sete, em doses esparsas e comedidas. Nosso caso é o mesmo dos futebolistas de finais de semana, que jogam um dia e ficam os outros seis entrevados.
Mas a vida sem a cerveja, por incrível que pareça, também pode ser bem vivida. Sem contar que o tempo que a ela dedicava, passei a ocupá-lo com boas leituras, pesquisas e produção de textos e livros. Estou apreciando coisas que nunca havia apreciado. Andava sempre muito ocupado com os churrascos e as cervejas para perceber a beleza à minha volta. Adiantei consideravelmente as leituras atrasadas, livros que aguardavam na estante estão sendo lidos. Estou assistindo mais filmes, trocando mais ideias com minha esposa. Resumindo, estou sentindo mais sabor ao degustar o néctar da vida.
Porém, um fato surpreendente me chama a atenção: fui completamente abandonado pela maioria de meus amigos. Tornei-me um esquecido. Somente aqueles que tomaram a mesma atitude permanecem em contato. Quase todos sumiram, até mesmo os mais frequentes numa rodada de cerveja. Sem beber não sirvo como companhia. Um até me disse que sente vergonha em me ligar quando está bebendo; fica constrangido de eu perceber sua embriaguez. Fui tachado de chato por outros. Alguns rezam ao deus Baal para que eu volte à vida boêmia, que levante logo da tumba em que me enfiei. Com exceção de minha mulher – como era de se esperar – praticamente não encontrei qualquer incentivo para continuar abstêmio. O pior não foi enfrentar a dura separação de minha cerveja, mas a indiferença dos amigos.
E o mais grave é que não tenho interesse em reatar o romance de volta. Acordo no sábado pela manhã e me surpreendo com a falta de vontade de tomar uma cerveja. Ando muitíssimo preocupado. O tempo passa e eu nada. Nada de reagir. E os amigos num silêncio tumular, até mesmo alguns compadres e primos que comigo degustavam de quando em vez, pelo menos um copo de chopp. E eu aqui, sóbrio, lúcido, sereno e chato para muitos.
Quando e se eu voltar a beber, estarei respaldado por algumas lições adquiridas durante os dias em que me fiz abstêmio. Andei observando o efeito etílico em alguns amigos e percebi que devo me esforçar ao máximo para conversar menos quando estiver bêbado; procurarei manter a serenidade e evitar cuspir na cara do interlocutor; prometo fazer uma recapitulação mental e tentar me lembrar de que aquela é a décima vez que repito a mesma história; quando perceber que estou ficando alterado, pedirei aos deuses que me concedam a força de voltar cedo para casa. Mas, principalmente, que eu nunca deixe de ligar para os meus amigos abstêmios. Eles continuarão meus amigos, mesmo que eu tenha de conviver com suas insuportáveis presenças sóbrias. Nada é mais agressivo a um bêbado do que um amigo sóbrio ao seu lado, observando os seus movimentos, enxergando de perto sua insensatez, o seu ridículo pensamento filosófico de boteco, as suas constrangedoras apologias ao consumo alcoólico e a sua triste ignorância com relação aos prazeres da vida abstêmia.
E se um dia voltar a beber, estarei livre das duras sequelas de tão traumática experiência. Parte de minha geração é bêbada e a sobriedade a agride profundamente. Prometo embriagar-me com serenidade daqui em diante, quando e se o fizer. Estou aprendendo a entender melhor os seres humanos que me rodeiam. Muitos se tornaram bem feios quando vistos por meus olhos e mente sóbrios, desanuviados, límpidos.
Aos abstêmios, se não um conselho, uma recomendação: não nos angustiemos ao sermos relegados ao abandono, isso é coisas passageira, aliás, como tudo na vida.
“Quem tem ouvidos que ouça, quem tem olhos que veja!”